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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A poética estética e cultural das artes de Dorival Caymmi.

Por Rafael Cunha de Vasconcelos

Caymmi foi o rei do mar, o cancioneiro do oceano e um harmonizador por força da intuição.


          Muito mais que cantor, compositor e intérprete da música e do cinema, Dorival Caymmi é pintor. Chegou a pensar em virar um profissional da arte plástica, de tanto que elaborou paisagens e retratos da sua amada terra natal, a Bahia, em seus momentos de ócil, da mesma forma como havia se tornado um artífice dos sons. Porém, houve em sua obra um abismo entre um código e outro, entre as paletas de tintas e as quadraturas do violão. Sua música foi a principal e a maior fonte de elementos para suas pinturas, de forma que suas telas ficaram propriamente ditas a um mero recurso da inspiração. Em seus quadros é notável vez ou outra a presença de uma personagem ou de um fenômeno natural, mas sua pintura se traduziu especificamente em representações de notas, escolhidas com zelo, cuidado e intuição para que pudesse mimetizar os fatos e as formas do seu universo.

         O amor pela pintura se tornou uma constante na vida de Caymmi. O convívio com Volpi, Rebolo, Pancetti e Graciano, no Clube dos Artistas e Amantes das Artes, conhecido também como Clubinho, em São Paulo, foi um dos mais importantes estímulos para a sua crescente atividade na pintura. Como Caymmi mesmo definiu, seu estilo era acompanhar toda a querela entre o abstracionismo e o figurativismo, mas nunca chegar a uma posição definitiva. Se considerava um lírico da pintura. Gostava da harmonia das cores e tinha a consciência de que não podia se desprender da forma. Além de paisagens, Caymmi pintou auto retratos, amigos e familiares.

         Uma análise mais aprofundada em Caymmi nos leva a constatação de que ele pode ser designado como o artista figurativo no sentido mais profundo da expressão. O compositor lançou mão de um vasto vocabulário harmônico, mais amplo que o até então utilizado na música popular brasileira para criar crônicas por meio de versos de inspiração folclórica. As melodias, seu tesouro maior, nasceram dentro de tais balizas. Caymmi era um artista que compunha “de ouvido”. As idéias sonoras por vezes começavam por um simples refrão ou uma trova popular, quase que por uma obstinação recorrente que terminava por desencadear um raciocínio mais amplo, mas que sempre retornava à noção inicial, dentro do esquema de rimas [A-B-A] da forma clássica da canção.
Suas canções foram depuradas ao longo dos 70 anos de carreira com um perfeccionismo inédito na música popular brasileira, tal quais estas canções se formaram num clube fechado. Para que pudesse ingressar na confraria, a canção aspirante precisava observar pré requisitos com equilíbrio, ordem, beleza clássica, regularidade, harmonia liberta das amarras formais, mimetismo natural e um certo sabor evocativo do folclore e do samba urbano. O teste do criado em relação a suas criaturas sempre foram feitas de formas rigorosas.

          Caymmi compunha com tamanha poeticidade e realeza, que as canções pareciam terem nascidas por geração espontânea, de tão naturais soam aos ouvidos. Parecem acontecimentos vindos diretamente da natureza para nossa sensibilidade, nos presenteando com manifestações involuntárias de brasilidade e baianidade.

          Caymmi utilizou de todo o tipo de recurso a seu alcance para enaltecer o amor a Bahia, o amor ao mar e ao amor a mulher brasileira. Como recursos havia tonalidades, modalidade e cromatismo. Só não avançou pelo atonalismo por uma espécie de apego a uma pressuposta “ordem natural”, que ele respeitava como atmosfera necessária para suas obras.
Tanto na música quanto na arte plástica, Caymmi usou de um recurso que somente ele sabia como fazer com grandeza e simplicidade, a emoção. Suas canções eram quase como orações, e suas telas a imagem do “santo”. Tal recurso pode livremente ser analisado em uma das suas mais ricas composições, O Mar, de 1942. Nos compassos introdutórios, desenha-se um prelúdio seguido de sua voz grave e mansa, quase que um canto erudito. Na canção Suíte dos Pescadores, Caymmi insere a suíte como recurso de linguagem popular brasileira, como numa obra erudita, a suíte compreende diversos movimentos ou estâncias, ora psicológicas, revezando gêneros como a ladainha, o samba, o hino, o recitativo e a ária. O autor atuou como um enciclopedista que recolhia ritmos e gêneros comuns entre os pescadores da Bahia dos anos 40. Usou também recursos evocativos de tipos urbanos populares, revelando em suas harmonias algo simples ou até mesmo retrógrada. 

          Caymmi sempre defendeu a idéia de que suas canções teriam quase que obrigatoriamente, retratar a crônica de uma época, a linguagem de uma gente.

          Nas canções Só Louco e Não tem Solução, ele faz o retrato íntimo de uma desilusão amorosa, momentos raros em que o compositor saía do mar e mergulhava brilhantemente no coração humano. Em Doralice, manifestou a ironia de um amante desprezado. Em A Preta do Acarajé e Balaio Grande, fez painéis de tipos da cultura de rua. Um de seus maiores clássicos Modinha para Gabriela, o ouvinte se depara com um auto-retrato de uma personagem, um episódio dramatizado, teatral. O Mar e A Lenda do Abaeté descortinam marinhas. A primeira nota-se uma aquarela onde acontece em doces pinceladas melódicas, só quebradas pela modulação, que metaforiza a mudança da maré. A segunda é elaborada em semitons carregados e repetições em colcheias pontuadas, como se invocasse as tintas pesadas a óleo. A música em jogo, entretanto, ultrapassa a idéia da pintura, a metáfora e as análises gramaticais.

          Na pequena obra de pouco mais de centenas de canções em 70 anos de carreira de Dorival Caymmi, sílabas e notas se combinaram para formar um organismo artístico de grande durabilidade. Suas composições pintaram retratos e paisagens com a força da natureza adestrada por uma intuição superior, invocando um figurativismo inaugurador de um paradigma funcional e eclético de representação na canção brasileira.


REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS

  • Paranhos, Adalberto, A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo. Revista ArtCultura, Minas Gerais. n.9, p. 22-31, jul-dez.2004.
  •   Caymmi, Stella. Caymmi e a Bossa Nova. O portador inesperado (1938 a 1958). Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2008. 144p.
  •  Bispo dos Santos Junior, Ivanildo. Poesia e memória cultural. Uma análise das principais influências do imaginário das águas português em composições de Dorival Caymmi. Revista de Estudo Linguisticos e LiteráriosPatos de Minas: UNIPAM (2): 59-66, nov. 2009.
  • Caymmi, Dorival. Caminhos do mar. Disponível em: <http://letras.terra.com.br/dorival-caymmi/924242/>. Acesso em: 27 set, 2010a.
  • Caymmi, Stella. Dorival Caymmi. O mar e o tempo. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001. 648p.
  • Almir, Chediak. Dorival Caymmi. Songbook, Vl 2. 3º Edição. São Paulo: Editora Lumiar, 1994. 142p.
  •  Taborda, Felipe. A Imagem do Som de Dorival Caymmi. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2004. 180p.
  •  Teresa Aponte Caymmi, Stella. O portador inesperado. A obra de Dorival Caymmi (1938-1958). Dissertação de Mestrado, Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006. 146p.


 OBS: Todo o conteúdo é de total responsabilidade do autor.

1 comentários:

Marcos Lúcio disse...

Lamentável que em um texto tão digno do excepcional talento do nosso Buda Nagô...haja erros primários como este:momentos de ócil. Só conheço a grafia correta de ócio. Há outros erros que precisam de revisão. Mas repito: o reconhecimento ou o louvor a este gênio, está belamente feito.
Em tempo: não sou professor de português, nem pretendo a perfeição...mas sou amante do idioma.
Marcos

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